sábado, 8 de outubro de 2011

O elo mais fraco

A proposta de Reforma Administrativa apresentada sob forma de Livro Verde é um documento que veio a público demasiadamente cedo, sem amadurecimento, sem ponderação e, assim sendo, porque é muito ousada e totalmente irrealista, dificilmente irá por diante nos moldes em que foi colocada.
Quero, antes de mais, assumir um conjunto de princípios e pressupostos, para que não se pense que sou um reacionário:
- aprecio a coragem que o Ministro Miguel Relvas demonstrou no programa televisivo "Prós e Contras", nomeadamente quando assumiu que, com reforma ou sem reforma, não haverá recuo na limitação de mandatos e, como tal, não será por esta via que alguns "dinossauros" em fim de carreira se poderão recandidatar;
- considero que algo tem que ser feito na divisão administrativa do país e que é irreal manter algumas freguesias que quase não têm eleitores;
- o mesmo é válido para alguns municípios que têm dimensão populacional ao nível de uma freguesia média de um concelho médio;
Ao mesmo tempo, não posso deixar de considerar que:
- os problemas da despesa pública nacional não advêem certamente das freguesias. O peso da despesa das freguesias no Orçamento de Estado é perfeitamente irrelevante, ao nível de qualquer pequena empresa pública;
- está consignado na Constituição desde 1997 (logo, não é nenhum excesso revolucionário) um princípio muito simples, que é o princípio da Subsidariedade. O que diz esse princípio? Diz que "tudo o que possa ser resolvido por um nível de poder político mais ‘baixo’, mais próximo dos cidadãos, deve sê-lo". Ou seja, o que puder ser feito por uma freguesia não deve ser feito por um município; tudo o que puder ser feito por um município não deve ser feito pelo Estado. A haver extinção de freguesias, este princípio sai violado;
- pode-se dizer que nenhum cidadão ficará sem pertencer a uma freguesia. Mas, se vão ser extintas as que se situam nas sedes de concelho, quer isso dizer que os habitantes da cidade passam a ter que ir a uma freguesia da aldeia, que passa a tutelar o território da sede do Município?!
- correntemente ouvimos falar no fosso que se cavou entre eleitores e eleitos. E ouvimos também diversas soluções para esse problema. Fala-se muito de uma democracia participativa, mais do que uma mera democracia representativa. Ora, é no mínimo estranho que agora, quando se verifica que, de acto eleitoral, em acto eleitoral, a abstenção aumenta, se venha reduzir aquele patamar de poder político que está mais próximo dos cidadãos e que esses cidadãos mais facilmente podem vir a exercer! É um facto, qualquer um de nós pode ser membro de uma assembleia de freguesia e não é pelos 12€ que se recebem por cada uma das 5 reuniões anuais que o Estado vai à bancarrota!
- para além do mais, isto das freguesias, pode até ser uma especificidade portuguesa, e até tem custos. Mas é o custo da democracia! Se não estamos satisfeitos com os custos da democracia e conhecemos um regime mais baratinho, então faça-se, como alguem já propôs (na altura com ironia), e suspenda-se a democracia! Mas não apenas por seis meses... pode ser já por sessenta anos. Quem aguentou quarenta, aguenta sessenta! Naturalmente que ninguém subscreve isto! A democracia tem os seus custos e não vem mal nenhum ao mundo que tenhamos à nossa porta uma instituição democraticamente eleita que nos ajuda a resolver os nossos problemas;
- essa é outra questão, os presidentes de junta, no mundo rural, leia-se na esmagadora maioria do território português, são ao mesmo tempo presidentes da junta, bombeiros (porque agem como se fossem membros da protecção civil), taxistas (porque por vezes, quando não há tranportes, eles que levam os seus fregueses ao médico e a outros sítios), ...Vai ser complicado mexer num patamar de poder ao qual as pessoas (os contribuintes / fregueses) até têm tanto apego.
- esta proposta baseia-se num princípio que faz sentido, mas que tem limites de razoabilidade. Um dos princípios que é inerente a esta proposta é que as freguesias são um apoio ao mundo rural. Isso determina que freguesias em territórios eminentemente rurais se possam manter. Mas esta é uma virtude que constitui ao mesmo tempo um excesso. É que esta lei, ao mesmo tempo que advoga a manutenção de freguesias com 300 habitantes, propõe a extinção de outras com 4.000 e mais eleitores só porque são, alegadamente, urbanas e próximas (estar a 10 km da sede do município é estar próximo?) da sede do concelho.
- quando digo "alegadamente", digo-o porque é isso mesmo: é alegadamente! Existe desde 2009 uma nova classificação da tipologia das freguesias. Esta nova tipologia de áreas urbanas tem critérios distintos da anterior tipologia. Anteriormente a 2009 existiam dois tipos de freguesias: freguesias rurais e freguesias urbanas. O critério distintivo era muito simples: freguesias com densidade populacional superior a 150 habitantes por km2 eram urbanas; com densidade inferior eram rurais. As coisas funcionaram bem assim durante muitos anos... Em 2009, mais concretamente no dia 28 de Setembro, curiosamente, quando todo o mundo autárquico andava em campanha eleitoral, foi publicada uma nova tipologia que administrativa e, estatisticamente, passou-se a classificar como urbanas freguesias que eram, até aí, rurais! Naturalmente, distraídos que andavam os autarcas, ou não tendo percebido o alcance que isto viria a ter, a verdade é que isto passou à margem do debate político que teria sido fundamental, até porque a generalidade dos concelhos portugueses estavam já à data em processo de revisão dos seus PDM;
- admitindo as minhas limitações já pedi a pessoas do ramo da matemática e do português que me ajudassem a ler e interpretar esta nova tipologia, que passo a transcrever:

 "Freguesia que contempla, pelo menos, um dos seguintes requisitos: 1) o maior valor da média entre o peso da população residente na população total da freguesia e o peso da área na área total da freguesia corresponde a espaço urbano, sendo que o peso da área em espaço de ocupação predominantemente rural não ultrapassa 50% da área total da freguesia."

Este é o critério que define uma APU: área predominantemente urbana...
Ninguém me soube explicar este critério e as opiniões são unânimes: os iluminados que escreveram isto nem sequer sabem escrever; faltam palavras; o que está escrito não significa nada pois nem sequer tem leitura.
Então, agora, sugiro que venham à aldeia, ao Portugal mais-ou-menos profundo, explicar ao povo o que isto quer dizer!
- por fazer uma alusão, ainda que indirecta, aos tecnocratas e aos pseudo-políticos - são pseudo-políticos os que se deixam comandar pelo Instituto Nacional de Estatística, entidade responsável por esta nova tipologia (já agora, pergunto: então é o INE é que manda no país??) - não posso deixar de me interrogar se, do alto das suas belas gravatas de seda, eles perceberão que não é igual fundir freguesias em Lisboa ou no Porto, onde existe uma consciência de bairro e não de freguesia, e fundi-las na província. Acham que sim? Então, experimentem... que logo veem.
- estes mesmos tecnocratas poderiam fazer aquilo que tantas vezes se faz. Olhar para o estrangeiro e perceber se, de facto, estaremos assim tão errados. Então, sem direito a honorários, aqui vai o meu estudo doméstico:
Em Portugal existem 308 Municípios; 4260 Freguesias e 2 Governos Regionais. No estrangeiro, como é?
1) Em Espanha não existem freguesias, mas existem 8111 municípios. A generalidade dos municípios tem menos de 5.000 habitantes e, em termos de área, tem entre 2 e 40km2. O maior munípio em termos de área é Tremp na provincia de Lleida. Tem 400km2, a mesma área que, por exemplo, o Município de Alcobaça, que até nem é dos maiores em Portugal! Para além dos Ayuntamientos (os municípios) existem 4 outros níveis de poder:
a) as Diputaciones: uma por cada provincia (50 no total, por exemplo a Andaluzia tem 7). Nestas diputaciones, que não têm poder executivo, existem dezenas (em cada uma) de deputados que auferem vencimentos com valores na ordem dos 4.000€ mês;
b) as Mancomunidades: que ficam acima das Diputaciones e abaixo das Juntas Regionales;
c) as Juntas Regionales: são os Governos Regionais das 17 Comunidades Autónomas;
d) o Governo Central de Madrid.
Ou seja, em Espanha há cinco níveis de poder político, todos eles com muitos políticos eleitos, com boas "nominas" (salários) e surprise, surprise... aquilo até funciona!
2) Não indo muito mais longe direi que em França é igual:
a) Governo Central;
b) Região;
c) Departamento;
d) União de Mairies (associação de municípios);
e) Mairies (municípios);
Como em Espanha, todos estes níveis têm orgão executivo e deliberativo...
E venham-me cá dizer que a nossa administração autárquica sai muito cara...
- já escrevi estas e outras minhas reservas acerca desta proposta a uma pessoa com algumas responsabilidades na matéria. Usei, nessa altura, um exemplo no qual eu não quero colocar qualquer tipo de ênfase, para que não se pense que estou a sugerir algo. Referi o caso de uma Sede de Freguesia que tinha, recentemente, sido vítima do rebentamento de uma bomba por parte de um gang que pretendia roubar uma ATM (esqueci-me, ainda há pouco de referir isto: no mundo rural, é habitual haver atm's na Sedes de Freguesia. Porquê? Porque não há agências bancárias!!). Voltando à Freguesia bombeada. No dia a seguir à explosão uma reportagem televisiva encontra alguns "fregueses" a chorarem a destruição da "sua junta". Eu pergunto, sem dar qualquer exemplo, se outros edifícios-sede de orgãos de poder político fossem alvo de ataque, se alguém iria chorar para a porta?
- é bom que se perceba a importância das Freguesias no campo, na província, no mundo rural.É um local onde se obtém atestados, onde funcionam serviços de correio (sim, porque a empresa pública de correios, mandando o serviço público às urtigas, tem vindo a fechar postos! E quem os substitui? As Freguesias, claro!), onde se practica a acção social com os pacotes de ajuda alimentar, onde os idosos levantam as suas reformas e pagam as suas contas, ... É isto que se pretende extinguir?
- estranho, um pouco, um certo silêncio, se não mesmo, comprometimento, da Anafre. Ou melhor, até nem estranho... por muito duro que isto seja, fico na dúvida se os dirigentes daquela associação, provenientes de grandes freguesias, não estarão já de olho nos territórios que poderão anexar (este termos é forte, mas...) com a extinção de freguesias vizinhas... A canibalização de freguesias é uma coisa muito feia e isto não é um concurso do "Elo mais fraco".
- enfim, eu prevejo que esta reforma seja apenas mais uma acha para a fogueira na qual o país se vai começar a consumir dentro de pouco tempo. Quem já assistiu às manifestações contra encerramento de urgências percebe que esta medida não vai gerar maior indiferença, certamente.

Mas tenho estado aqui a falar das freguesias e nem dispensei atenção aos municípios.
A lógica dos executivos mono-colores não me choca. Não acho mal, nunca percebi o que fazem vereadores sem pelouros à mesa da reunião do executivo...
Admiro-me que o Prof. Marcelo tivesse achado, no seu comentário, que o CDS poderia ser contra esta reforma pois perderia presença nos executivos... Nada mais errado, Sr. Professor! Com esta alteração, torna-se mais difícil obter maiorias absolutas de um só partido. Ou seja, se até aqui, num pequeno munícipio com menos de 10 mil habitantes, para ter maioria absoluta, num cenário de bipolarização, nem era preciso chegar aos 40%, de futuro, com a eleição de um número de membros para a Assembleia Municipal necessariamente maior do que aquele que eram, até agora, eleitos para a Câmara (5 no caso de pequenos municípios), será mais difícil garantir uma maioria mono-color, logo isto abre campo para mais coligações pós-eleitorais entre PSD e CDS... Ora, quem percebe minimamente destas coisas sabe que coligações significa compromissos, do género: "eu entro na coligação mas quero uma piscina na minha terra...". E isso, sim, já nos levou onde nos levou... Para além de que os executivos se tornarão mais instáveis: os membros da assembleias municipais que, actualmente, percebem que o seu lugar é o de fiscalizador, no futuro passarão a aspirantes a vereador, o que pode vir a causar guerras complicadas. Por outro lado, numa situação de maioria absoluta mono-partidária, o Presidente da Câmara forma o seu executivo a seu bel-prazer, o que pode vir a defraudar as expectativas do eleitorado, uma vez que a ordem pela qual se constituem as listas não é necessariamente a ordem pela qual vai escolher os seus vereadores...
Mas esses até nem são os principais problemas.
Para mim o problema está, mais uma vez, na estatística.
É objectivo do Governo reduzir o número de vereadores e vai consegui-lo! Mas vai cortar em vereadores que recebem uma senha de presença de cerca de 80€ por cada reunião (normalmente há duas por mês) e vai aumentar o número de vereadores que recebem vencimento! Ou seja, totalmente contraproducente.
Esta proposta possibilita que um Município com pouco mais de 10.000 eleitores constitua um executivo com um presidente e quatro vereadores! 5 políticos que passam a exercer política profissional e que constituem os seus gabinetes de apoio pessoal. Ora, num município desta dimensão, até agora formava-se uma maioria com apenas 4 em 7. Ou seja, esta reforma encarece o custo das administrações municipais, o que contraria os princípios enunciados em defesa dessa mesma reforma!

Enfim, a conversa já vai longa... falta-me apenas dizer que o Governo e a Assembleia da República podiam começar por dar o exemplo reduzindo o número de deputados. A constituição prevê que o número de deputados se situe entre 180 e 230. Apesar do contexto de crise, que se vive desde há dez anos a esta parte, o número de deputados eleitos mantem-se no máximo: 230.
Seria melhor reduzir para 180. Cortava-se nos deputados das filas de trás. Não se prejudicava o funcionamento da AR, bem pelo contrário. Divindindo os 180 deputados num sistema misto: 90 eleitos num círculo nacional e 90 eleitos em círculos distritais, permitiria conjugar duas coisas necessariamente boas:
- maior representatividade, já que qualquer partido político que tivesse 1% da votação nacional conseguiria eleger um deputado;
- mantinha a representatividade regional/distrital;
Mas isto... talvez um dia! Por agora, ao jeito de Augusto Santos Silva, que parece ter feito escola nos Ministros Adjuntos, o que está a dar é malhar nas freguesias.
E por falar em Ministros Adjuntos, da última vez que Miguel Relvas teve a brilhante ideia de criar áreas metropolitanas, sem que houvesse qualquer metrópole polarizadora, criaram-se conflitos e disputas locais que, só passados 8 anos, serenaram. O distrito de Leiria é disso exemplo... E a serenidade agora atingida só foi conseguida à sombra da vitória eleitoral do PSD... Ele teve o demérito de, não tendo conseguido provar a existência de sentimentos regionais (que já haviam sido chumbados em referendo), ter virado as populações umas contra as outras. Eu lembro-me bem de como olhavam para nós em Leiria por termos escolhido a via mais fácil, mais cómoda, mais lógica e a que o tempo viria a provar ter sido a escolha mais acertada: ficar no Oeste. Imagino o que teria sido se Alcobaça tivesse "embarcado" numa artifical área metropolitana que viria a provar-se ser um nado morto.
Há pessoas que não aprendem com os erros do passado...